De 'cristofobia' a
Amazônia: os sete pontos polêmicos do discurso de Bolsonaro na ONU
Embora
tenha adotado tom menos agressivo do que em 2019, Bolsonaro não fugiu às
polêmicas em seu discurso de abertura da Assembleia Nacional da Organização das
Nações Unidas, na manhã desta terça-feira (22/9).
Como a
BBC News Brasil adiantou, Bolsonaro se concentrou em defender sua gestão da
pandemia de coronavírus e as ações em prol do meio ambiente. E acusou a
imprensa, os governadores, o protecionismo de outras nações e os
"interesses escusos" de organismos internacionais pelas críticas que
sua gestão tem recebido tanto pelo alto número de vítimas - são 137 mil mortos
por covid-19 no país - quanto pelas queimadas nas regiões amazônicas e
pantaneiras.
Bolsonaro
reafirmou ainda o compromisso do Brasil com a ordem democrática, com a
liberdade dos povos e com a busca de paz e cooperação internacional. E lembrou
que o Brasil está empenhado em aprofundar sua missão como produtor de
alimentos, que hoje já o credenciam a alimentar um sexto da população mundial.
Há
décadas o Brasil é responsável pelo discurso inaugural da Assembleia Geral da
ONU. Esse ano, no entanto, por causa da epidemia de coronavírus, o plenário da
ONU ficou vazio e todos os líderes enviaram seus discursos por transmissão
online. O discurso gravado de Bolsonaro foi apresentado no plenário pelo
embaixador brasileiro na ONU Ronaldo Costa e a transmissão engasgou logo no
começo, o que forçou a organização do evento a reiniciar a fala do presidente
brasileiro.
Veja
ponto a ponto quais foram as polêmicas do discurso:
A culpa é da imprensa, da Justiça e dos
governadores
Em discurso, Bolsonaro disse que o
"o lema 'fique em casa' e 'a economia a gente vê depois', quase trouxeram
o caos social"
Ao falar
da pandemia de coronavírus, Bolsonaro afirmou que "queria lamentar cada
morte", em uma expressão de solidariedade pela qual foi reiteradamente
cobrado no Brasil.
Na
sequência, no entanto, eximiu o governo federal de maiores responsabilidade
pela extensão da pandemia no país. "Desde o princípio, alertei, em meu
país, que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego, e que
ambos deveriam ser tratados simultaneamente e com a mesma
responsabilidade", afirmou.
Por um
lado, afirmou que "parcela da imprensa brasileira politizou o vírus,
disseminando o pânico entre a população". E que "sob o lema 'fique em
casa' e 'a economia a gente vê depois', quase trouxeram o caos social ao
país".
Bolsonaro
também afirmou que teve sua atuação limitada "por decisão judicial",
em menção à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou que
governadores detinham a palavra final sobre as quarentenas em seus Estados.
Desde o início da epidemia, o presidente diminuiu a gravidade da doença, que
chegou a chamar de "gripezinha" e contrariou as recomendações dos
especialistas de evitar aglomerações e usar máscaras. Também entrou em choque
com os governos estaduais que tentavam conter o espalhamento da doença em seus
estados.
A paternidade do coronavoucher
Ao mesmo
tempo, ao classificar como "arrojadas" as ações de seu governo,
Bolsonaro tomou para si a paternidade do auxílio-emergencial de R$600, o
chamado coronavoucher, que o próprio Executivo tentou derrubar no início.
Durante o
processo de votação das medidas no Legislativo, o ministro da Economia Paulo
Guedes chegou a dizer que seu limite seria de R$ 200. Mas o presidente da
Câmara, Rodrigo Maia, puxou o valor para R$ 500 e ao final o governo concordou
em fechar o valor em R$ 600.
"Nosso
governo, de forma arrojada, implementou várias medidas econômicas que evitaram
o mal maior. Concedeu auxílio emergencial em parcelas que somam aproximadamente
1000 dólares para 65 milhões de pessoas, o maior programa de assistência aos
mais pobres no Brasil e talvez um dos maiores do mundo", afirmou
Bolsonaro.
Em parte
graças à transferência de recursos diretamente à população, Bolsonaro viu sua
popularidade crescer especialmente entre as classes mais baixas e expressou o
desejo de transformar o auxílio-emergencial em um programa permanente, batizado
de Renda Brasil.
Mas a
dificuldade da equipe econômica de encontrar formas de financiamento para o
programa que, nas palavras do presidente, "não tirassem dos mais pobres
para dar aos paupérrimos" fez com que Bolsonaro suspendesse a criação do
megaprograma social até 2022.
Brasil vítima de "brutal" campanha de
desinformação
Embora
quase 20% do Pantanal já tenha sido atingido por incêndios neste ano e que na
Amazônia tenha havido um aumento de 28% das queimadas em julho, Bolsonaro
afirmou que a repercussão desses fatos da imprensa internacional é parte de
"uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o
Pantanal".
Sem citar
nomes, o presidente afirmou que a riqueza da Amazônia "explica o apoio de
instituições internacionais a essa campanha escorada em interesses escusos que
se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o
objetivo de prejudicar o governo e o próprio Brasil".
O
presidente afirmou que por ser área úmida, a Floresta Amazônica não permite a
propagação de fogo. Especialistas nacionais e internacionais têm afirmado, no
entanto, que as queimadas frequentes contribuem para o fenômeno da degradação,
que avança em toda a região e deixa a floresta mais seca e vulnerável aos
incêndios.
Estudos
também contestam a afirmação de Bolsonaro de que as queimadas são feitas
principalmente "onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em áreas já
desmatadas". Durante a temporada de fogo em 2019, o Instituto de Pesquisa
Ambiental da Amazônia (Ipam) afirmou que a alta nos incêndios está diretamente
relacionada ao desmatamento.
Os dados
também mostraram que a proporção de áreas grandes (com mais de 500 hectares)
desmatadas entre 2018 e 2019 foi a maior em dez anos. Isso, segundo os
especialistas, indica que grandes produtores também podem estar diretamente
envolvidos na grilagem de terras.
Bolsonaro
disse ainda que "mantenho minha política de tolerância zero com o crime
ambiental" e que estes são combatidos com rigor. Mas a BBC News Brasil
mostrou que a aplicação de infrações ambientais pelos órgãos de fiscalização no
Pantanal, no auge da crise das queimadas, despencou em 48%. E um outro
levantamento da BBC News Brasil mostrou ainda que o Ibama aplicou um terço a
menos de multas a infratores ambientais em 2019 do que em em 2018, segundo
dados do próprio órgão. A queda foi ainda mais acentuada em crimes contra a
flora (queimadas, desmatamento ilegal etc.), e na Amazônia.
Em sua
gestão, o presidente criou ainda um órgão de apelação contra multas que, de
acordo com especialistas, facilitam a impunidade para quem tenha sido autuado.
Durante a
campanha eleitoral em 2018, Bolsonaro, que já foi multado por pesca irregular
em area de preservação ambiental (autuação que prescreveu), criticou a
fiscalização ambiental sobre agricultores e pecuaristas, uma de suas bases
eleitorais.
Hidroxicloroquina e tratamento precoce
O
presidente ainda afirmou que seu governo investiu e estimulou o
"tratamento precoce" de pacientes com coronavírus. Embora não tenha
mencionado a hidroxicloroquina nesse ponto do discurso, o presidente tem
advogado pela prescrição da droga a pacientes com covid-19 no início dos
sintomas, mas a recomendação não possui nenhum embasamento científico.
O próprio
Bolsonaro se mediu com a hidroxicloroquina quando recebeu o diagnóstico de
covid-19, embora o medicamento para malária tenha demonstrado trazer mais
riscos do que benefícios a contaminados pelo novo coronavírus até o momento.
Mais
adiante em seu discurso, ele mencionou o aumento no preço da hidroxicloroquina
como um risco para a sobrevivência humana. "A pandemia deixa a grande
lição de que não podemos depender apenas de umas poucas nações para produção de
insumos e meios essenciais para nossa sobrevivência. Somente o insumo da
produção de hidroxicloroquina sofreu um reajuste de 500% no início da
pandemia", afirmou.
Indígenas bem assistidos
Bolsonaro
também afirmou que seu governo "assistiu a mais de 200 mil famílias
indígenas com produtos alimentícios e prevenção à covid". Bolsonaro não
mencionou no entanto que a tensão entre os povos indígenas e seu governo apenas
aumentou durante a pandemia e que as ações do Executivo geraram ação no STF,
que recomendou que o governo faça barreiras sanitárias para proteger as
populações nativas e garantir os direitos delas.
A
Organização Panamericana de Saúde (OPAS), braço da OMS nas Américas, afirmou
que as populações nativas têm sido cinco vezes mais atingidas do que a média da
população brasileira. E em relatório lançado em agosto, o relator especial da
ONU sobre direitos humanos e substâncias e resíduos tóxicos, Baskut Tuncak,
afirmou que "no Brasil, as comunidades Yanomami encaram uma crise
existencial e sanitária pelo contato com mineradores ilegais".
Combate à 'cristofobia'
Em um
aceno a sua base eleitoral evangélica, Bolsonaro afirmou ao final de seu
discurso: "Faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade
religiosa e pelo combate à cristofobia". O presidente não afirmou o que
exatamente seria a cristofobia a que se referiu. Os evangélicos são hoje uma
das principais forças políticas do país e sua bancada representa mais de 21% da
Câmara dos Deputados.
Por outro
lado, o Brasil tem visto a ocorrência de intolerância religiosa que, com
frequência, atingem praticantes de religiões afro-brasileiras, com agressões e
destruições de templos de umbanda e candomblé.
Bolsonaro
afirmou ainda que "o Brasil é um país cristão e conservador e tem na
família sua base". A Constituição de 1988, no entanto, assegura que o
Brasil é um país laico e secular, e que seus atos como Estado devem ser
desvinculados de princípios religiosos.
*Com
Camilla Costa, da BBC News Brasil em Londres