Aos revanchistas caçadores de militares, que não investigaram também os
crimes praticados pelos subversivos comunistas, dentre eles Dilma Rousseff, e
que, por perseguição pós-anistia legal, não tiveram escrúpulo e decência de
arrolar na famigerada COMISSÃO DA (in) VERDADE somente aqueles que realmente praticaram
crime contra a humanidade, que reflitam acerca do texto abaixo.
Pela memória de meu
pai
Papai não cometeu crimes contra a humanidade. Tentou evitá-los.
Foi escolhido para o cargo para isso. Por seu perfil. Era a missão. Acreditava
na instituição do Exército.
Pouco após o assassinato de Vladimir Herzog dentro de sua cela no
DOI-Codi, em São Paulo, o presidente Ernesto Geisel e o ministro do Exército,
Sílvio Frota, convocaram meu pai ao Planalto. Desejavam que assumisse o comando
do Centro de Informações do Exército, o Ciex. Precisavam de alguém que acabasse
com o horror dos porões. Papai, o general Antonio da Silva Campos, não queria o
cargo. Em família o pressionamos para que passasse à reserva. Era uma ordem,
ele a acatou. (Mantinha o pedido de saída para a reserva pronto na gaveta.) Por
conta desta passagem de pouco mais de um ano pelo comando do Ciex, seu nome foi
listado entre os 377 responsáveis por crimes contra a humanidade da Comissão da
Verdade.
O que leva um nome a ser colocado como responsável por crimes contra a
humanidade em um relatório oficial? Ele é citado três vezes no documento, todas
de forma vaga. Mas está na lista. Os membros da comissão sequer descobriram o
ano em que nasceu ou aquele em que morreu. Puseram seu nome entre os
responsáveis pelo pior de todos os crimes que um ser humano pode cometer sem,
ao menos, ter o respeito, a decência, de buscar saber de quem se tratava.
A Geisel e Frota, naquele dia, papai argumentou que não tinha o perfil.
Que sua vida no Exército havia sido toda baseada no respeito à Convenção de
Genebra. “Quem aceita tocar num fio de cabelo de um preso”, lhes disse, “ainda
mais torturar, é um ser doente.” Não eram militares de fato. Eram pessoas “a
quem nenhuma ordem é capaz de conter”. Como de fato nenhuma ordem conteve.
Durante aquele ano do Ciex, que passou viajando de quartel em quartel tentando
impedir a barbárie, perdeu dez quilos.
Papai nasceu em família pobre. Sua mãe, imigrante portuguesa, foi uma
empregada doméstica que jamais aprendeu a ler. Entrou nas Forças Armadas porque
ali poderia estudar, encontrar futuro. Se fez voluntário para combater o
fascismo durante a Segunda Guerra. Foi preso e arriscou corte marcial porque se
recusava a separar soldados brancos de negros em seu pelotão durante paradas.
Contava a história do único homem que soube ter matado, um soldado alemão, na
Batalha de Montese. Lance de sorte: sacou mais rápido, disparou. Seguindo as
regras, retirou do corpo o cordão de identificação que seria enviado para as
forças inimigas e manuseou sua carteira. Lá, encontrou a foto de uma mulher e
de um bebê. No meio de um tiroteio, nunca se sabe se uma bala feriu ou matou.
Mas, naquele momento, ele soube. Os pesadelos com aquela imagem o perseguiriam
pelo resto da vida.
Entre seus melhores amigos estavam vários militares cassados pela
ditadura. Dentre eles, o brigadeiro Rui Moreira Lima. Estão, como papai,
mortos. Não podem vir à frente e depor em seu nome, contar quem foi Antonio da
Silva Campos. Mas eu, sua filha, posso.
O período da ditadura foi difícil para nós. Eu ia às passeatas pedir a
volta da democracia, ele implorava que ficasse em casa. Tinha medo de que, se
desaparecesse, não conseguiria me localizar. Ainda tenente-coronel, no fim dos
anos 1960, foi responsável direto por um preso político, na Vila Militar.
Almoçava com ele. Talvez ainda esteja vivo. Foi libertado e retornou para
visitar meu pai.
Papai não cometeu crimes contra a humanidade. Tentou evitá-los. Foi
escolhido para o cargo para isso. Por seu perfil. Era a missão. Acreditava na
instituição do Exército. Talvez não devesse. De fato comandou o Ciex em 1976 e
1977. Mas, por honestidade, por integridade, no mínimo por uma questão de
decência, antes de listar seu nome entre alguns dos homens mais abjetos que
passaram pelas forças militares brasileiras, deviam se informar sobre quem foi.
Mas não fizeram, sequer, uma busca no Google.
Claudia
Maria Madureira de Pinho é filha do general Antonio da Silva Campos, citado
pela Comissão da Verdade como responsável por crimes contra a Humanidade.