As manifestações pouco civilizadas do presidente Jair Bolsonaro justificam o seu apelido de "Cavalão", cultivado durante o seu período de militar.
Morte de Luiz Maklouf, no último dia 16, reascende o interesse sobre seu último livro, que esmiúça o julgamento de Jair Bolsonaro por planejar ato terrorista em 1988 e que resultou em sua saída do Exército
Por César Fraga
/ Publicado em 25 de maio de 2020
A entrevista foi feita em três momentos. Em 26 de agosto de 2019 e num segundo e terceiro contatos realizados em janeiro/fevereiro deste ano com o jornalista e escritor Luiz Maklouf Carvalho, que morreu no último sábado, 16, no Hospital AC Camargo, na capital paulista, aos 67 anos. Ele lutava contra um câncer de pulmão havia dois anos. Uma postagem de sua filha também jornalista Luiza Maklouf no Facebook faz uma síntese da trajetória humana e profissional ao mesmo tempo em que confirmava a notícia. (Leia a íntegra).
Maklouf nasceu em Belém, no Pará. Trabalhou nos jornais Resistência (durante a ditadura militar), Movimento, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Folha de S. Paulo e das revistas Época e Piauí. Seu último emprego foi como repórter do jornal O Estado de São Paulo, desde 2016.
Em nota de pesar, a editora Todavia, que publicou seu último livro, O cadete e o Capitão – A vida de Jair Bolsonaro no quartel, objeto desta entrevista, destaca Maklouf como “um dos maiores repórteres do Brasil em atividade. Apurador meticuloso e incansável, foi autor de livros e reportagens fundamentais. Vencedor de dois prêmios Jabuti de livro-reportagem – Mulheres que foram à luta armada (Globo) e Já vi esse filme: Reportagens (e polêmicas) sobre Lula e/ou o PT (Geração Editorial). Em seu último trabalho retratou a vida de Jair Bolsonaro no quartel, com uma apuração irretocável que revelou fatos controversos da biografia do atual presidente. Uma grande perda para o jornalismo e para a cultura brasileira”.
O Cadete e o Capitão ganha especial importância com eleição de Jair
Bolsonaro para a presidência da República no final de 2018, que suscitou uma
série de perguntas sobre o momento anterior a seu ingresso na política, no fim
da década de 1980 e por que motivos ele abandonou a carreira militar. Bolsonaro
tornou-se uma figura pública em 1986, quando assinou na revista Veja um
artigo em que reclamava dos baixos salários pagos aos militares. Um ano depois,
voltou a aparecer nas páginas da mesma Revista, só que desta vez em reportagem
que apontava um plano terrorista que visava explodir bombas em locais
estratégicos do Rio de Janeiro.
Para realizar o livro, Luiz Maklouf Carvalho se debruçou sobre a volumosa documentação do processo e as mais de cinco horas de áudio da sessão secreta – ambos disponíveis nos arquivos do Superior Tribunal Militar (STM). Também entrevistou diversos personagens que atuaram no caso, entre jornalistas de Veja e militares colegas de Bolsonaro.
A reportagem de Maklouf publicada em O cadete e o capitão reconstitui
um episódio decisivo não apenas para a trajetória do presidente eleito em 2018,
mas também para o entendimento do fazer jornalístico, acerca da
redemocratização do país e sobre o momento atual.
A entrevista que segue é, se não a última concedida pelo autor, uma das últimas
e detalha o conteúdo de um livro que coloca em dúvida o resultado alcançado
pela Justiça Militar, demonstrando claramente, que pode ter ocorrido uma grande
farsa.
Extra Classe – Como o senhor situa a importância do
seu livro-reportagem O cadete e o Capitão, sobre o julgamento
de Jair Bolsonaro, que
resultou em sua saída do Exército, e que aborda também a cobertura da imprensa
na época?
Luiz Maklouf – A gente tem um presidente da
República que foi eleito sem que episódios e fatos importantes da sua vida, de
uma maneira geral, fossem examinados, aprofundados e discutidos. Seja pelo
motivo que for, essas histórias nunca foram esclarecidas. Depois levou aquela
facada. Houve recusa em participar dos debates que poderia ter participado. O
período eleitoral foi pequeno. Antes disso, ele era um deputado federal do
baixo clero sem muita visibilidade. Então, sabia-se das histórias, que a mídia
publicou várias vezes sobre esse período militar e sobre essas encrencas em que
ele se envolveu no período em que foi do exército, mas tudo era muito confuso.
Ou seja, uma ótima história mal contada, contada de maneira confusa ou, diria
até, contada parcialmente.
EC – Para alguns, passa a até por lenda urbana,
dada a enxurrada de fake news e guerra de versões.
Maklouf – Há debates que participei em que as pessoas
contam coisas incríveis do tipo: “ele não era capitão” ou “isso é mentira”. Ou
seja, tem ou tinha uma cortina grossa encobrindo essa história. E, eu digo
tinha, porque sem falsa modéstia o meu livro esclarece essas histórias
referentes ao período militar. São duas histórias que foram, na época, gravosas
e que deram muita mídia e muito barulho e, que justamente tiraram Bolsonaro do
anonimato, que ele, assim como milhares de oficiais do exército, vivia no
quartel.
EC – E que tipo de oficial ele era?
Maklouf – Ele era um oficial que se destacava pelas
atividades físicas e atléticas. Tinha muitos elogios nessa parte. O apelido
dele na academia das Agulhas Negras era Cavalão. Do ponto de vista das
disciplinas de conteúdo ele foi um aluno razoável. Poucas notas boas, mas na
maioria razoáveis. Era um ilustre desconhecido como outro qualquer, que estava
lá para cumprir suas obrigações como militar. Isso, até o artigo dele publicado
na revista Veja, em setembro de 1986, intitulado O salário
está baixo. Aquilo, do ponto de vista do regulamento militar foi
considerado um atrevimento e uma desobediência. Era algo inadmissível dentro da
hierarquia militar. Nesse período, ele já era capitão, paraquedista, casado e
com três filhos. Trata-se de um artigo assinado na última página da revista de
maior circulação do país. Foi um deus-nos-acuda. Bolsonaro ganhou seus
primeiros 15 minutos de fama. E lhe rendeu também uma prisão disciplinar por 15
dias. Do ponto de vista militar, foi considerado uma transgressão grave. Esse
texto está transcrito no caderno de imagens do livro, assim como grande parte
dos documentos aos quais eu vou me referindo. Aliás o que é essencial para a
compreensão dos episódios está lá.
EC – Uma das características do seu livro é a farta
documentação.
Maklouf – Eu fiz questão disso, porque assim o leitor
vai lá e consulta, se quiser. Não fica só com a interpretação. Inclusive, as
matérias de Veja estão integrais. Laudos grafotécnicos.
EC – O contexto da época era de pós-abertura,
metade do Governo Sarney e o caldo político não era tranquilo.
Maklouf – Sim, era o primeiro governo democrático
depois da ditadura. Era um momento importante da história do país. A ditadura,
de uma maneira ou de outra havia sido derrotada e não existia mais. E neste
artigo a que me refiro há um ataque direto à política econômica do governo e à
autoridade do Ministro do Exército que se chamava Leônidas Pires Gonçalves. Era
um momento de algumas manifestações pontuais aqui e ali. Em 1986, a publicação
do artigo foi algo que se destacou por si só e não teve paralelo. Um ano
depois, a Veja publicou em uma matéria que Bolsonaro havia
contado para sua repórter Cássia Maria Rodrigues, que ainda descontente com os
soldos baixos, tinha um plano terrorista chamado Beco sem Saída em que ele
ameaçava explodir bombas em unidades militares em protesto contra esses baixos
salários. Veja publicou isso. A matéria fez muito barulho.
Bolsonaro teria pedido sigilo e a reportagem e editores da Veja acharam que era fato de interesse público. O que dá para entender a partir daí?
Maklouf – O que dá para entender é que Bolsonaro era
uma fonte da repórter. Apartir do artigo, em 1986, ele teria se tornado uma
fonte dela. Segundo relato da jornalista, em seu depoimento, tudo leva a
entender que Bolsonaro seria uma fonte. E numa dessas conversas, mais para
1987, ela conta que, em se tratando de uma ameaça terrorista de alta gravidade,
era obrigação de um jornalista divulgar, e eu concordo com essa avaliação de
não compactuar com esse segredo tenebroso. Veja reafirmou a
denúncia em uma segunda reportagem depois de ter sido desmentida, tanto pelo
capitão Bolsonaro e pelo colega dele, que era coparticipe do plano, segundo a
versão de Veja, quanto pelo Ministro do Exército da época. Veja,
portanto, havia sido desmentida cabalmente. A Revista, então, publicou os dois
croquis do plano, reafirmando que os mentirosos eram os dois oficiais, e que o
Ministro do Exército acreditava em dois mentirosos, revalidando a denúncia de
sua repórter. A partir desse momento, a coisa bifurcou. Bolsonaro dizia
que Veja mentiu. Veja refirmava que Bolsonaro
é quem mentiu. Só restava uma forma de apurar os fatos, que era judicializar
militarmente o caso. Foi o que ocorreu. E o meu livro, principalmente da metade
para o fim, se detém em grande parte, em mostrar didaticamente, com começo meio
e fim, nos mínimos detalhes e de uma forma agradável ao leitor, para não ficar
muito chato, as três fases dessa judicialização.
EC – E o General Newton Cruz nisso tudo? Afinal
existem relatos de encontros dele com Bolsonaro e seus parceiros. Inclusive de
jantares na casa do general. E que ele, Newton Cruz era simpático à causa do
capitão. Se falava em criar uma situação ideal para uma eventual candidatura
para João Figueiredo nas eleições seguintes. Como essa história é abordada no
livro?
Maklouf – Essa judicialização militar teve uma
sindicância que não deu em nada e teve um julgamento por um Conselho de
Justificação (uma espécie de primeira instância) em que Bolsonaro perdeu por
três a zero, que dizia que quem mentiu foi o capitão Bolsonaro e que Veja dizia
a verdade. Tudo porque dois laudos grafotécnicos acusavam o capitão de maneira
peremptória como sendo o autor dos mesmos, inclusive do croqui da bomba que
seria colocada na adutora do Guandu, no Rio de Janeiro. Baseado nesses dois
laudos grafotécnicos, que constam como prova nos autos, ele foi condenado.
Nessa instância aparece o nome dessa figura citada na pergunta, o general Newton
Cruz. Na época, ele se encontrava na reserva e notoriamente conhecido pelas
suas atividades no período da Ditadura, controversas e autoritárias.
EC – Inclusive, ele respondeu pelo assassinato do
jornalista Alexandre Von Baumgarten e chegou a ser acusado de participação no
atendado a bomba do Rio Centro em 2014, que prescreveu.
Maklouf – Sim, e é sempre bom dizer que ele respondeu e
foi absolvido. Precisamos levar em consideração o resultado final, senão não
vale. Isso para qualquer um: para você, para ele e para mim. Uma figura
controversa e de posições claramente autoritárias.
EC – E na caserna Newton Cruz era contrário ao
General Leônidas?
Maklouf – Sim. O generalato que tinha sido
derrotado pela Democracia que estamos falando. Isso inclui o Newton Cruz.
EC – A gente fala de Forças Armadas como sendo uma
coisa só, mas eles têm lá suas correntes internas como qualquer instituição.
Maklouf – Tanto ontem, como hoje. Não tenhamos
dúvidas quanto a isso. Isso é essencial para mostrar a cereja do bolo do livro
depois, que é questionar o resultado do julgamento, que ocorre depois destes
três a zero.
EC – Mas, voltemos ao Newton Cruz.
Maklouf – É essencial para entendimento dos
desdobramentos do caso, porque Bolsonaro o arrolou como testemunha de defesa.
Bolsonaro quando esteve em Brasília, participando de um exercício, pegou uma
turma de capitães e levou até a casa do general para conhecê-lo. O general
Newton Cruz então considerou ter sido uma noite “retemperante”, por ter se
sentido homenageado. Isso demonstra mais uma vinculação, já naquela época, ao
espírito militar da ditadura que foi derrotado pela democracia. E que vai ser
essencial na terceira fase do caso. Ele perdeu por três a zero e o caso subiu
para uma instância superior, que é o Superior Tribunal Militar (STM), a maior
instância dessa área. Subiu o endosso de mérito – que não precisava ter dado
mas deu – do general Leônidas ao resultado adverso para o capitão Bolsonaro. Ou
seja, o Ministro do Exército assinou embaixo, concordando com o resultado.
EC – Em algum momento Bolsonaro teria comparado
Leônidas a Pinochet, procede essa informação?
Maklouf – Chamou de Pinochet, de racista e mais alguns
adjetivos pesados. Segundo relato da repórter, ele ofende bastante o general
Leônidas, que foi uma espécie de pivô da história, porque ficou em uma situação
difícil. Em determinado momento, ele veio a público e disse, “acredito nos meus
oficiais”. Ou seja, acreditou no desmentido do Bolsonaro. Quando o Conselho de
Justificação o condena, baseado nos laudos grafotécnicos conclusivos, o
ministro passa vergonha. Inclusive, tem a dignidade de vir a público naquele
momento e pedir desculpas. Fez uma autocritica, dizendo que revista Veja é
que estava certa e que ele estava errado. Assim, ele endossou no mérito dessa
sentença de três a zero. Mas, por força de lei subiu para o STM e de lá, e essa
é, digamos, a parte mais importante do livro, o Bolsonaro reverteu essa derrota
por um resultado favorável a ele de nove a quatro.
EC – Dá para dizer que seu livro coloca esse
resultado final em xeque?
Maklouf – O meu livro questiona esse resultado de
absolvição. Ele afirma baseado nessa documentação, que o TSM julgou de forma
contrária às provas dos autos. Trata-se uma documentação em papel, com mais de
700 páginas, tudo oficial e carimbado como “reservado” e disponível no STM, e
mais áudio da sessão secreta em que Bolsonaro foi julgado em 16 de junho de
1988, quase 32 anos atrás. Para um repórter, é como você encontrar um tesouro.
É ter acesso a uma coisa secreta de um tribunal militar. A maioria dos
ministros foram indicados durante a ditadura militar, portanto esse espirito de
corpo que o Bolsonaro pertenceu foi determinante no julgamento. E pelo fato de
terem feito vistas grossas de maneira ostensiva à prova técnica dos autos, que
são os laudos. Então, o Bolsonaro levou para o Tribunal, ele próprio, sem
advogado, uma ideia estapafúrdia de que havia um empate entre quatro laudos.
Esse empate dois a dois, In Dubio Pro Reo, o beneficiaria. O
que era uma falácia e o Tribunal acatou essa falácia. Eu demonstro, no livro,
com essa documentação, que o Tribunal julgou contra a prova dos autos e cometeu
um erro grave. Deveria tê-lo considerado culpado e não o absolvido.
EC – Existe algum momento do julgamento que torne
isso mais evidente. Que demonstre algum tipo de acordo ou negociação que
levasse a esse resultado? Ou é mais uma daquelas coisas que não dá para
afirmar, mas que fica no ar?
Maklouf – Olha, eu uso, no livro, o verbo aventar.
Aventar significa que, baseado nessa documentação farta, que foi bastante
trabalhada por mim; nesse áudio, ouvido por mim diversas vezes, você fica se
perguntado: mas poxa, e os dois laudos contra o capitão, por que os ministros
não falam nisso? Por que eles ignoram? E com todas essas outras interpretações,
as ligações dele com o general Newton Cruz foi a resposta que eu dei para essa
pergunta.
Eu avento que houve um grande
combinado para preservá-lo, para não o condenar, desde que ele saísse do
Exército, onde aliás ele não iria muito longe porque ele já tinha uma prisão e
o currículo não era lá essas coisas. Inclusive, ele se candidatou naquele mesmo
ano a vereador na Câmara do Rio de Janeiro. Fica claro para o leitor, quando vou
mostrando intervenção por intervenção, ministro por ministro, como eles
trataram essa questão dos laudos.
EC – O que foi desconsiderado pelo STM?
Maklouf – Essa parte da Veja, da repórter,
dos editores da maior revista do Brasil, não foi sequer tocada no julgamento, a
não ser muito de passagem. Porque esses jornalistas todos foram – assim como os
capitães e colegas de Bolsonaro, generais e oficiais – também convocados a prestar
depoimentos. Uma das entrevistas importantes é com o então editor assistente da
revista Veja no Rio de Janeiro, o Ali Kamel, que hoje é o
diretor de jornalismo da TV Globo. Ele acompanhou aquilo de perto e
hoje tem essa posição proeminente na Rede Globo. Eu procurei montar esse
quebra-cabeças com todas as partes encaixando de uma maneira completa. Eu
espero que o leitor do livro saia informado. É um livro sóbrio, de pouquíssimos
adjetivos e muito objetivo. Não entra nessa lamentável guerra panfletária que a
gente está vendo aí.
EC – Isso a sua própria biografia como jornalista
comprava. Até por episódios que envolveram matérias suas com o próprio Lula,
que chegou a restringir sua presença em determinadas coberturas. Aliás, eu
gostaria que o senhor explicasse aos leitores como é a busca do repórter por
isenção apesar de ser impossível a imparcialidade.
Maklouf – Eu, como todo repórter, como todo jornalista,
gosto de histórias maravilhosas, de histórias ótimas ou no mínimo de boas
histórias. Não dá para ficar perguntando se vai atrapalhar alguém, fulano,
beltrano ou partido A, B ou C. E isso é independente de qualquer simpatia que
você possa ter. Eu jamais troquei, troco ou trocaria uma bela história por
conveniência nenhuma. Só quero que ela seja bem contada. Sou dessa geração.
Quanto mais fatos e papelada e consistência melhor. Sigo nessa linha desde o
começo da carreira. Tem uma matéria que fez muito barulho na época, que foi a
revelação da Lurian, filha de Lula no Jornal do Brasil, onde eu
trabalhava na época. Isso foi em 1989. Fui eu quem deu esse furo. Aliás,
modestamente foi um furaço. Mas também, paguei meus pecados. Depois fiz
diversas matérias sobre o PT, inclusive sobre atos antiéticos, coisas pontuais
aqui e ali. Escrevi um livro sobre essas reportagens. Ganhei um prêmio Jabuti.
O livro se chama Já vi esse filme, sobre o Lula e PT. É um livro de
600 páginas. Depois teve a Dilma. Fiz uma matéria mostrando que não era
verdadeira a história de ela ter feito mestrado na Unicamp. E, paralelamente
fiz, imagino que a única, entrevista da Dilma sobre a tortura. Que é uma
entrevista com lágrimas de sangue, literalmente. Então, meu ponto é esse, uma
história boa. O leitor ganha quando a gente vai jogando luz. “O melhor
detergente é a luz do sol”, já dizia Louis Brandeis, Juiz da Suprema Corte
norte-americana, um século atrás. Quanto mais transparência melhor. No caso
desse livro, O Cadete e o Capitão, estamos falando do presidente da
República. É uma coisa meio assustadora.
EC – E parece que fica muito claro, no próprio
livro, que desde sempre ele tenta criar em torno dele uma aura de mito, para se
tornar mais aceito. Também tem o episódio da ida dele ao garimpo. Como o
senhor, depois de concluído o livro, define o Jair Bolsonaro?
Maklouf – Olha, eu tenho tentado evitar de fazer essas
comparações. Eu sou repórter. Não sou analista político. Eu me atenho aos fatos
em si e neste período determinado da história. Tem o episódio que ele foi ao
garimpo com colegas militares, que é dessa época. O que não tem nada demais. Trata-se
de uma atividade totalmente legal. O que existe é que um comandante dele, na
época, que somando outros elementos, entendeu que essa ida ao garimpo mostrava
uma pessoa de ambição excessiva.
EC – Também teve o episódio das bolsas fabricadas com tecido de paraquedas pertencente ao Exército.
Maklouf – O livro mostra que ele tinha uma certa
dificuldade e que em alguns momentos tinha uma preocupação com ganhar dinheiro.
Num determinado momento ele fazia bolsas com os paraquedas usados. Eles
mandavam o alfaiate do quartel fazer essas bolsas para vender. E isso era
proibido. Ele foi advertido e parou. Depois ele foi para a fronteira do Brasil,
no Mato Grosso do Sul, que é um período obscuro ainda desse período militar. O
que ele foi fazer lá ninguém sabe. Mostro no livro apurações de que ele uma
época tentou plantar arroz não deu certo. Plantou melancia e funcionou. Fez
contrabando para o Paraguai. Ele tinha dessas coisas. E tem esse coronel
Pelegrino, que fez a crítica por escrito sobre a excessiva ambição do
Bolsonaro. E isso foi em 1983. Cinco anos depois, no processo, ele não só
mantém as críticas, como ainda agrava suas críticas, acrescentando tratar-se
Bolsonaro de um oficial com problemas de comando. Que achava que era o rei da
cocada preta, mas não era. E esse coronel foi para Bolsonaro sempre uma pedra
no sapato.
EC – Mas ele tinha também no generalato quem o
protegesse. Se fala que tinha um general que era mais amigo dele e que pesava
nas decisões contra ele. Quem seria esse general na época?
Maklouf – Não há um levantamento preciso sobre isso. Os
que vêm a público, são notórios. Um é este que você mencionou, o general Newton
Cruz. Também, João Batista Figueiredo, que foi o último presidente da ditadura,
e depois que o Bolsonaro foi eleito vereador no Rio, mandou uma carta de
congratulações. Evidentemente, que neste caldo aí tinham outras viúvas da
ditadura. Do outro lado da hierarquia há o episódio, que é público, do conceito
que o general Ernesto Geisel, que foi o penúltimo presidente da ditadura, tinha
do capitão. Ele afirmou que Bolsonaro era um mau militar. Isso também está
registrado no livro. Não há uma unanimidade, nem para um lado, nem para o
outro. Até hoje, parte da oficialidade o admirou pela rebeldia e pela polêmica
e parte o execrou pelas mesmas razões. Sempre se considerando que hierarquia é
um princípio fundamental nesse meio. Minha impressão, e apenas uma impressão, é
que os militares, que cercam o presidente hoje, sequer têm informações
detalhadas sobre esses episódios que eu conto no livro.
EC – E muitos estão com ele desde aquela época.
Maklouf – É que foi uma coisa muito fechada.
Não é como hoje que tudo ganha publicidade e que hoje você vai lá no STM e está
tudo à disposição. Naquela época eram todos documentos reservados.
EC – Bolsonaro aposta na confusão e na ficção sobre
si?
Maklouf – Uma das coisas que iguala ele lá atrás e ele
hoje é que, tanto o capitão quanto o presidente, tem extrema dificuldade de
lidar com o contraditório. Parece que ele faz questão da confusão sobre isso.
Ficou ofendendo a jornalista dizendo que ela era incompetente, que tinha sido
demitida da Veja. E provo no meu livro que isso não é verdade. Ele
nunca falou de uma forma transparente sobre o fato, como foi criando uma série
de histórias ficcionais sobre si próprio.
Uma dessas histórias, e que salta
mais à vista, é a que ele diz que ajudou o exército a combater e capturar o
capitão Carlos Lamarca no vale da Ribeira. Isso é uma coisa que não tem a menor
evidência de que seja real. É uma bazófia a rigor. Há outras histórias que ou
são exageradas ou simplesmente não são verdadeiras. O que o livro mostra é que,
neste período, esta característica do atual presidente já era muito evidente.
EC – Ele já demonstrava nessa época uma intenção de
ir para a vida política?
Maklouf – Eu entrevistei, para o livro, o coronel que
era o comandante dele na época, que parece, se não o primeiro, mas foi um dos
primeiros a sugerir isso para ele. E, consideremos que o filme dele estava
queimado no exército. Não é um exagero dizer que dificilmente ele iria longe na
carreira militar. Ele tinha uma prisão. Tinha se envolvido numa polêmica
pública. E, uma polêmica gravosa, que envolvia um plano de soltar bombas em
quartéis e adutora. Ele concorreu na eleição de 1988 e, só depois de eleito,
pediu para entrar para a reserva. E até é possível cogitar que se ele não
tivesse sido eleito, permaneceria militar.
EC – Tem um momento que Bolsonaro reencontra o Ali
Kamel durante o debate para as eleições presidenciais em que manifesta que a
revista Veja o catapultou para a política.
Maklouf – É um episódio que conto, que é bem atual. De
quando Bolsonaro foi participar da entrevista com os presidenciáveis, com a
Renata Vasconcellos e com o William Bonner. Nessa ocasião, ele encontrou muitas
pessoas da emissora em uma sala. Entre essas pessoas, o Ali Kamel, diretor de
jornalismo. E ele mesmo, o Bolsonaro, virou-se para Kamel e falou: “Ali, a
gente já se conhece né, de 1987? ” Então, o Kamel lembrou-se da história e
disse: “sim, eu tinha 25 anos na época”. Nesse momento, Bolsonaro teria dito,
conforme a pessoa que me contou essa história, “não tem problema, sem mágoas”.
Nisso, Kamel rebate, “como assim sem mágoas? Não fosse aquele episódio o senhor
não teria aparecido para a política”. Isso mostra que essa história ainda está
muito presente na cabeça dele e foi importante na sua vida. E, mais uma vez ele
faz uma referência torta ao caso. O que o meu livro prova, no final das contas,
é que a Veja estava certa ao atribuir a ele o croqui da bomba.
Antes da entrevista na TV Globo com William Bonner e Renata Vasconcellos, o ainda candidato Jair Bolsonaro reencontrou Ali Kamel, diretor de jornalismo da emissora e ex-editor assistente da Veja à época dos ocorridos
EC – Com o livro, deixa de ser uma história mal contada e passa a ser bem documentada. Pena que alguns personagens, entre eles o próprio Bolsonaro, não quiseram lhe conceder entrevistas?
Maklouf – O principal deles, o hoje presidente. Insisti
muito desde antes, quando ele ainda era candidato, já no começo da apuração,
para que fizéssemos uma entrevista detalhada sobre esse assunto. Enfim, tentei
todos os caminhos possíveis de assessoria e pessoas próximas a ele, desde
coronéis, amigos e pessoas que convivem com ele no dia a dia. Usei todos os
meios que um repórter pode usar para conseguir uma entrevista com alguém. Ele
não concedeu. O mesmo ocorreu com a repórter Cássia Maria, da Veja, que
também não deu. Tentei da maneira que pude e tanto ela quanto o fotógrafo da
revista, que participou da reportagem na ocasião. Nenhum dos dois quis dar
entrevistas. No caso da Cássia Maria, eu tenho interlocutores que falam com ela
e ela tem dito a essas pessoas que não toca mais no assunto porque tem medo.
Então eu não vou entrar no mérito.
EC – Ela chegou a receber ameaças de morte na
época, não?
Maklouf – Mas aí tem os dois lados. Ela diz que o
capitão fazendo esse gesto da arminha, que ele adora fazer até hoje, por trás
de um vidro, a ameaçara. Que dava para para ver de outra sala quando ele a
teria ameaçado de morte, enquanto ela foi prestar depoimento. Por outro lado, o
capitão Bolsonaro negou peremptoriamente que tenha feito ameaça. Inclusive,
pediu de maneira formal, que fosse feita uma perícia no vidro da sala, porque
segundo ele seria um vidro canelado, e que, portanto, ela não poderia vê-lo
fazendo esse sinal. O fato é que essa perícia estranhamente nunca foi feita. O
coronel que comandou esse processo entendeu que não era necessário.
Objetivamente falando, ficou uma palavra contra a outra. Aliás, seria um bom
assunto, se ela tivesse dado a entrevista. E, com ele também. Seria uma chance
de esclarecer algumas lacunas que ainda ficam sobre essa história. Uma pergunta
que certamente eu faria, seria: “mas, poxa, como é que o senhor conseguiu
convencer o tribunal de que havia um empate entre esses quatro laudos?” Eu
colocaria a íntegra dos laudos na mesa bem na frente dele diria, “me mostre
onde existe empate aqui. Aqui tem um dois a zero contra o senhor”. Continuo
bastante curioso quanto a isso.
EC – Inclusive, havia laudo da Polícia Federal?
Maklouf – Sim, o laudo decisivo foi o laudo do órgão
que sabe fazer laudo, o Instituto de Criminalística da Polícia Federal. Ficaram
algumas lacunas, que obviamente trariam mais contribuições e completariam
partes da história. Mas eu acho, que de maneira geral, no essencial, acho que o
leitor sai do livro com uma sensação de “que bom, agora eu sei o que
aconteceu”. Como ele tem lá as íntegras dessas reportagens todas, os laudos, as
documentações relevantes, é um livro que dá para ele ler e reler, conferir os
documentos, olhar as imagens e chegar à conclusão dele. Que é esse o objetivo
dos jornalistas.
EC – Muita gente não tem clara essa trajetória
política de Bolsonaro e nem de suas ligações com a política do Rio e no
Congresso.
Maklouf – Reforça minha ideia de que temos um
presidente cujo conhecimento público sobre ele é muito pequeno, sobre as
atividades que ele se envolveu ao longo da vida, né? Seja porque durante muitos
e muitos anos ele foi um deputado que realmente nunca se destacou, a não ser
nos momentos em que vinha ameaçar as pessoas e elogiar a tortura. Essas coisas
abomináveis. Fazendo um paralelo com o Trump, lá nos EUA, a transparência foi
maior. Tem um livro sobre ele, chamado Revelando Trump, que foi
fruto de uma entrevista longa feita em vários momentos, de vinte horas dele com
jornalistas do Washington Post, que botou uma equipe de mais e 20
repórteres durante três meses para levantar o máximo possível de coisas,
considerando a intempestividade da candidatura. E, para o bem ou para o mal,
achando bom ou achando ruim, ele sentou-se com esses jornalistas e concedeu
essas entrevistas, que somando tudo dá 20 horas de conversa. Se formos comparar
com Bolsonaro durante a campanha não chegamos a essa soma de jeito nenhum. Aqui
tivemos muito pouco. Acho que grande parte da vida dele precisa ser melhor
esclarecida, começando com a carreira parlamentar. Acho que é preciso fazer
livros ou reportagens aprofundadas sobre isso. Inclusive, que tipo de vereador
ele foi. Como foi sua trajetória como deputado. Quando ele começa a acrescentar
na biografia essas alusões à tortura? Acho que isso daria um retrato muito mais
completo dele. Tem mais essa coisa da atividade no Rio de Janeiro, essa
estranha ligação com esses milicianos. Alguns deles condenados, e que até hoje
não há transparência sobre isso. Como eu já disse. O presidente tem problemas
em sentar para conversar e enfrentar temas contraditórios e perguntas difíceis.
Eu cito um exemplo no livro, da entrevista dele com o Rubens Valente da Folha (de
São Paulo), que está no YouTube, que mostra como ele reage quando
as perguntas são sobre coisas que o desagradam. No caso do Rubens ele só não
bateu no repórter por sorte. Mas chegou bem perto disso. O repórter teve um
comportamento digno. Enquanto o presidente deu uma aula de ignorância, o
jornalista teve um comportamento tranquilo. É um exemplo de como ele tem
dificuldade. Qual é o problema de sentar com o repórter que está fazendo um
livro sobre ele? Ele foi fartamente avisado de que eu estava fazendo o livro.
Por que não sentar e dizer, olha isso não foi assim, foi de outra forma, que
isso ou aqui não é verdade? Obvio que diria, não, presidente, mas está aqui o
documento, que prova a verdade. Entendeu?
EC – Essa esquiva parece uma tentativa de não
legitimar, não seria isso?
Maklouf – Eu acho que mais do que isso, essa esquiva é
no sentido de aproveitar a confusão. Porque, parece que ele entende que essa
confusão tira votos de um lado, mas coloca votos de outro. Em vez de dizer,
como ele foi perguntado algumas vezes ao longo da vida, foi o senhor que
desenhou o croqui com a ameaça de bomba? Ele podia dizer que não. As respostas
são sempre curvilíneas. Já foi perguntado a ele se a repórter mentiu e ele não
respondeu de maneira clara.
EC – Sobre isso, ele afirmava em seu artigo
para Veja que muitos cadetes estavam abandonando a Academia
por conta dos baixos salários. E a Revista afirmava que também havia questões
ligadas a homossexualismo e drogas e ele rebateu que a Revista mentia sobre
esses pontos.
Maklouf – Esses motes já eram daquela época, essa
questão preconceituosa mesmo, são um pouco a origem do artigo. E depois dessa
prisão ele se recolheu. Ele ficou satisfeito ali com a repercussão que deu.
Virou uma pessoa famosa, ao menos no ambiente dele, mesmo que não com
unanimidade. Mas, com certeza obteve alguns apoios por suas posições. Nesse
segundo momento de 1987 já haviam outros focos de rebelião militar, isolados.
Teve o caso de Apucarana, que o capitão, colega dele, invadiu a prefeitura.
Havia um momento de ebulição que deixava o general Leônidas em palpas de aranha
com a hierarquia dos quartéis. Essa questão do Leônidas é uma questão chave,
porque quer goste dele ou não, ele era o primeiro ministro do Exército na era
democrática. Ele teve uma série de problemas. Se bateu com a Constituinte
algumas vezes, mas dentro de um regime democrático. Ameaçava. O doutor Ulisses
Guimarães vinha e reagia. Há uma grande diferença entre uma ditadura e uma
democracia, mesmo que problemática e insuficiente como a nossa, naquele
momento. Mas é uma diferença de qualidade essencial. E esse pessoal todo do
Bolsonaro representava esse espírito derrotado dessa direita militar que havia
sido colocada para fora do poder. E, naquele período ali, eles estavam
inconformados. Tudo que pudessem fazer para atrapalhar eles faziam.
EC – E esse espírito revanchista dessa ala da
caserna, o senhor não sente ainda muito forte neste Governo?
Maklouf – Não é que eu não sinta. Eu não me sinto é
autorizado a afirmar. Em princípio eu até responderia que não, porque é uma
geração que já está historicamente bastante distante disso. Não vejo que o
entusiasmo seja o mesmo de gerações militares anteriores. Acho que virou uma
coisa mais retórica do que de fato. Essa turma que está aí hoje é outra turma,
mas claro, uma turma bastante fiel àquele espírito de um golpe que derrubou um
presidente constitucionalmente eleito. Acho que não é correto fazer uma
transposição mecânica desses dois momentos, 1964 e agora. Há semelhanças, mas
esse pessoal de hoje também foi pouco estudado e não se sabe exatamente as
conexões todas. Nunca vi nenhum desses oficiais, desses generais, que estão com
ele no governo falar, por exemplo, sobre essa história do artigo da Veja, da
ameaça de bomba. O livro, desde o lançamento não recebeu nenhuma palavra de
contestação do outro lado. Talvez por este livro ter essa característica de ser
um livro sóbrio e em cima de fatos. O panfleto não ajuda ninguém em nada.
Sempre é muito melhor a gente colocar os fatos. Simples assim, depois do
trabalho feito as pessoas tem um bom material para saber mais sobre um
determinado fato e isso ajuda a esclarece-lo. É este o espírito que o
jornalismo. Enfim é isso que devemos continuar perseguindo.
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