Este texto foi originalmente publicado em outubro de 2022 e republicado após atualização. Fonte: BBC News.
Ao deixar o cargo neste domingo (1º), o ex-presidente Jair Bolsonaro já
não tem mais direito ao foro especial por prerrogativa de função, popularmente
conhecido como foro privilegiado. Isso quer dizer que ele passa a responder a
processos na Justiça comum.
Enquanto Bolsonaro era presidente, o foro privilegiado garantia que ele
só fosse alvo de investigações criminais com autorização do Supremo Tribunal
Federal (STF). Além disso, ele só podia ser denunciado na Justiça pela
Procuradoria-Geral da República (PGR), após autorização da Câmara dos
Deputados; e só podia ser julgado pelo STF.
Agora, no entanto, Bolsonaro volta a responder à Justiça comum, e
qualquer promotor do Ministério Público pode apresentar denúncias de crimes
contra ele, que serão analisadas por juízes de primeira instância.
Entenda a seguir quais são as suspeitas de crimes pelas quais Bolsonaro
pode ter que responder na Justiça comum a partir de agora.
Inquéritos no STF
Enquanto era presidente, Bolsonaro era investigado em quatro inquéritos
autorizados pelo STF e enfrentava acusações de crimes feitas pela CPI da Covid
que estavam em apuração pela PGR.
Agora, o mais provável é que esses processos sejam encaminhados à
Justiça comum — com exceção dos casos em que há envolvimento de pessoas que
continuam a ter foro privilegiado.
Nesses casos, os processos podem continuar a ser julgados nas instâncias
superiores ou podem ser desmembrados — com os réus com foro privilegiado sendo
julgados por instâncias superiores, e os outros réus respondendo a um processo
separado que é encaminhado para a Justiça comum.
Sem o foro privilegiado de Bolsonaro, a Polícia Federal pode continuar
as investigações sem autorização do Supremo, as apurações que estão sendo
feitas pela PGR passam para a competência de instâncias inferiores do
Ministério Público, e os processos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passam
para o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) da região onde houve a suspeita.
Bolsonaro também perdeu o direito de ser defendido pela Advocacia-Geral
da União (AGU) e vai precisar contratar um advogado particular.
Os quatro inquéritos são:
- Sobre a divulgação de notícias falsas sobre a vacina contra covid-19
(INQ 4888);
- Sobre o vazamento de dados sigilosos de ataque ao TSE (INQ 4878);
- Inquérito das fake news, sobre ataques e notícias falsas contra
ministros do STF (INQ 4781);
- Sobre interferência na Polícia Federal (INQ 4831).
Notícias
falsas sobre a vacina contra covid-19
A divulgação de notícias falsas sobre a vacina contra covid-19 é um dos
crimes que a CPI da Covid acusa Bolsonaro de ter cometido.
O pedido de abertura do inquérito foi feito após o presidente ler uma
notícia falsa em uma transmissão ao vivo nas redes sociais feita por ele em 21
de outubro de 2021.
A notícia enganosa dizia que pessoas vacinadas contra a covid no Reino
Unido estavam "desenvolvendo a síndrome da imunodeficiência adquirida
[Aids]", o que não é verdade. Na mesma live, Bolsonaro citou notícias
falsas sobre uso de máscaras.
Tanto o Facebook quanto o YouTube, plataformas nas quais Bolsonaro fazia
a transmissão, retiraram a live do ar para evitar a disseminação da
desinformação.
O caso foi investigado pela Polícia Federal sob supervisão do STF. A PF
concluiu que ações de Bolsonaro se enquadram no crime de incitação pública à
prática de crime (art. 286), já que, segundo a PF, o discurso teve potencial de
alarmar espectadores e incentivá-los a descumprir normas sanitárias
compulsórias na época.
Em agosto, o ministro Alexandre de Moraes, que é relator do caso, enviou
o pedido de indiciamento de Bolsonaro ao Procurador-Geral da República, Augusto
Aras, mas Aras nunca fez denúncia contra Bolsonaro por isso.
Em entrevista à rádio Jovem Pan, Bolsonaro se justificou dizendo que
"apenas" mencionou na live uma matéria de revista que fazia a
associação enganosa entre imunizantes e Aids. E criticou o fato de estar sendo
acusado de crime pela declaração.
"Eu mostrei uma matéria. Não inventei aquilo. Agora falar qualquer
coisa de vacina passou a ser crime", criticou o ex-presidente.
Com a perda do foro privilegiado, o caso deixa de ser competência da PGR
e passa para o Ministério Público Federal, que pode então enviar denúncia à
Justiça Federal.
Divulgação de dados sigilosos sobre ataque ao TSE
Vídeo relacionado: Bolsonaro sobre atos em QG: ''Não
participei" (Dailymotion)
Bolsonaro também é investigado em um inquérito aberto em 2021 como um
desmembramento do inquérito das fake news. A partir de uma notícia-crime
enviada pelo TSE, o ministro Alexandre de Moraes determinou a abertura de uma
investigação separada.
O inquérito desmembrado é sobre a divulgação de dados de uma
investigação sigilosa sobre ataques ao TSE. Os dados foram divulgados por Bolsonaro
e pelo deputado Filipe Barros com o envolvimento do delegado da Polícia Federal
Victor Neves Feitosa Campos.
Segundo o TSE, o objetivo do vazamento seria contribuir para um
narrativa fraudulenta sobre o processo eleitoral, "atribuindo-lhe, sem
quaisquer provas ou indícios, caráter duvidoso sobre a lisura do sistema de
votação no Brasil".
Em fevereiro, a delegada da Polícia Federal que comanda a investigação
enviou um relatório ao Supremo com a conclusão de que Bolsonaro cometeu crime
de violação de sigilo funcional. Ela, no entanto, não poderia na época indiciar
Bolsonaro por causa do foro privilegiado.
Em agosto, a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, pediu
o arquivamento do inquérito, mas o pedido foi negado pelo ministro Alexandre de
Moraes, que argumentou que a PGR não tem poder para impedir o prosseguimento de
uma investigação policial que não foi requisitada pelo próprio órgão. Com a
prerrogativa do foro privilegiado, Bolsonaro acabou não sendo denunciado por
esse crime, já que isso precisaria ser feito pela própria PGR, que havia pedido
o arquivamento do caso.
No entanto, agora Bolsonaro pode ser indiciado pela Polícia Federal e
denunciado pelo Ministério Público, respondendo pelo processo na Justiça comum,
se o Supremo decidir que não cabe manter o processo lá diante da perda do foro.
Inclusão
no inquérito das fake news
Em agosto de 2021, Bolsonaro foi incluído no chamado "inquérito das
fake news", que tramitava no STF desde 2019. A investigação apura notícias
falsas, falsas comunicações de crimes e ameaças contra os ministros do Supremo,
e está ligada a um outro inquérito sobre atuação de milícias digitais para
atacar a democracia no Brasil.
A inclusão de Bolsonaro na investigação aconteceu a pedido do TSE, que
enviou uma notícia crime ao STF após uma transmissão ao vivo em que Bolsonaro
divulgou notícias falsas que questionavam a confiabilidade do processo
eleitoral.
Para o ministro Alexandre de Moraes, "observou-se, como
consequência das condutas do Presidente da República, o mesmo modus
operandi de divulgação utilizado pela organização criminosa
investigada" no inquérito das fake news, "pregando discursos de ódio
e contrários às Instituições, ao Estado de Direito e à Democracia".
Apesar de ter algumas decisões divulgadas de tempos em tempos, o
inquérito é sigiloso e tramita no STF em segredo de Justiça.
Por ter se originado a pedido do STF, este caso deve continuar
tramitando na Corte.
No entanto, agora, caso Bolsonaro venha a ser indiciado, isso pode ser
feito sem necessidade de participação da PGR. Por diversas vezes, o
ex-presidente criticou o inquérito das fake news dizendo que é ilegal, por
funcionar sem participação do Ministério Público.
"Alexandre de Moraes abriu um inquérito de mentira, me acusando de
mentiroso. É uma acusação gravíssima. Ainda mais num inquérito sem qualquer
embasamento jurídico. Não pode começar por ele. Ele abre, apura e pune? Sem
comentários. Isso está dentro das quatro linhas da Constituição? Não
está", disse o ex-presidente em entrevista à rádio Jovem Pan.
Interferência
indevida na Polícia Federal
A investigação foi aberta após denúncias do ex-ministro de Bolsonaro (e
agora senador eleito) Sergio Moro, que ao deixar o governo em 2020 afirmou que
o presidente fez tentativas de interferir indevidamente na atuação da Polícia
Federal.
Bolsonaro negou interferência. Em entrevista ao Jornal Nacional, da TV
Globo, durante as eleições, disse que, segundo Moro, a prova da interferência
estava numa reunião do governo. E completou:
"Eu não tinha a obrigação de entregar a fita. Entreguei a fita. Foi
revelado até muitos palavrões na reunião de ministros. Não acharam nada."
A PGR afirmou que não existem provas suficientes contra Bolsonaro para
imputação de crime e pediu o arquivamento. O STF ainda não decidiu se arquivará
o caso. Se não for arquivado, também pode passar para a competência da Justiça
comum.
Crimes
apurados pela CPI da Covid
Além dos inquéritos no STF, Bolsonaro também tem acusações feitas contra
ele — resultantes do relatório final da CPI da Covid — que estavam sendo
apuradas pela Procuradoria-Geral da República. No entanto, o procurador-geral da
República, Augusto Aras, visto como aliado do presidente, nunca chegou a
denunciar Bolsonaro pelas acusações.
Na verdade, para oito das dez apurações preliminares de possíveis crimes
cometidos, a PGR pediu arquivamento ao STF. Entre elas, estão: acusação de ter
causado epidemia com resultado morte (por suspeita de propagar o vírus); de ter
praticado charlatanismo (devido ao incentivo de uso de medicamentos sem
eficácia); ter cometido infração de medida sanitária preventiva (por realizar
aglomerações e não usar máscara); ter feito uso irregular de verbas públicas
(por uso de recursos públicos na compra de medicamentos ineficazes) e ter
cometido prevaricação (por supostamente não ter mandado investigar denúncias de
corrupção na compra de vacinas).
Na época da divulgação do relatório final da CPI, Bolsonaro afirmou que
a comissão não fez nada "produtivo" e gerou apenas "ódio e
rancor". Ele disse que não tinha "culpa de absolutamente nada",
e que o governo fez "a coisa certa desde o primeiro momento".
Mas o STF ainda não decidiu se acolhe o pedido da PGR e arquiva as
investigações. Se tivessem sido arquivadas, elas só poderiam ser reabertas pelo
Ministério Público se houvesse novas provas.
Com a perda do foro, o Supremo decidirá se envia as investigações relacionadas
a Bolsonaro para análise na Justiça comum. Mas é possível que as apurações
fiquem no STF, se envolverem outros investigados que ainda possuem foro
privilegiado.
Se o caso for para a Justiça comum, caberá a um procurador decidir se
oferece denúncia. E caberá a um juiz de primeiro grau decidir se abre ou não
ações penais contra Bolsonaro.
Ações
que podem deixá-lo inelegível
Bolsonaro também responde a doze ações no TSE por suspeita de prática de
crimes contra o sistema eleitoral.
Com a perda do foro, é possível que essas ações sejam enviadas aos TREs
dos locais onde os crimes teriam sido cometidos.
No entanto, também é possível que a Justiça entenda que a competência
para julgar algumas das ações continua sendo do TSE — não por foro de
prerrogativa de Bolsonaro, mas pela natureza dos crimes.
Uma das acusações é de que Bolsonaro e o general Braga Netto praticaram
abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação ao fazer um
evento para embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada em julho de 2022.
No evento, transmitido pela TV Brasil, Bolsonaro fez ataques ao sistema
eleitoral e a autoridades do Poder Judiciário.
Na época, a Presidência da República disse, em nota, que Bolsonaro
manteve encontro com chefes de missões diplomáticas para intercâmbio de ideias
sobre o processo eleitoral. E seu partido afirmou que o encontro não podia ser
considerado propaganda eleitoral. Segundo o PL, foi uma reunião de governo, e
não de campanha.
Caso seja condenado pela Justiça Eleitoral em qualquer uma das doze ações, Bolsonaro ficará inelegível.
Incitação ao crime
Antes de se tornar presidente, Bolsonaro já era réu em dois processos
penais por incitação ao crime de estupro e por injúria contra a deputada
federal Maria do Rosário (PT). Em dezembro de 2014, Bolsonaro agrediu
verbalmente a deputada, dizendo: "Não estupraria você porque você não
merece".
Bolsonaro foi condenado a pagar indenização e a pedir desculpas no
processo por injúria, mas a ação penal por incitação ao estupro foi paralisada
em 2019 por causa da eleição de Bolsonaro à Presidência. A ação foi suspensa
temporariamente, já que o presidente da República não pode ser responsabilizado
durante o seu mandato por atos cometidos antes de se tornar presidente.
Com a saída de Bolsonaro do Planalto, no entanto, a ação volta a correr
na Justiça, e o ex-presidente pode ser condenado à detenção de três a seis
meses — pena que costuma ser convertida em multa.
Durante o processo, Bolsonaro e seus advogados afirmaram que o
presidente estava no exercício do mandato parlamentar no momento da fala
gravada — e que a Constituição assegura imunidade parlamentar nesses casos.
Bolsonaro pensou que
estava salvo das garras da Justiça. Agora, vai ter de gastar din din com
advogados para não sentir o cheiro da cadeia. É bom JAIR pedir asilo
político!!!
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